Lady Gaga já é conhecida por seu engajamento político, e a maioria de nós têm consciência de seu desejo genuíno de tornar o mundo um lugar melhor para todos. Ela é um símbolo da comunidade LGBT, uma ativista, uma mulher feminista e empoderada, extremamente preocupada com a aceitação das diferenças e com a diminuição do ódio e das desigualdades na nossa sociedade – assim como ela transparece em suas músicas e discursos. E mesmo que a fama seja algo tão instável, ela nunca teve medo de usar sua voz para dar visibilidade àquilo que ela acredita ser o correto – o que já a fez ser banida de três países, sendo a China o mais recente.

No dia 26 de junho, Gaga participou da Conferência de Prefeitos dos Estados Unidos junto com Dalai Lama, onde ambos falaram sobre bondade, além de terem respondido algumas perguntas dos prefeitos que estavam presentes. Para saber mais sobre, é só ler esta notícia (aqui), ou simplesmente assistir ao vídeo legendado pelo RDT abaixo:

Pra quem não viu, vale a pena ver! É um ótimo debate que traz pontos significativos sobre a importância da bondade na administração pública, e, em partes, é realmente inspirador. Mas confesso que houve uma parte específica em seu discurso – aos 10:01 minutos do vídeo acima – que me chamou a atenção, e que, obviamente, me inspirou a escrever esse texto.

“Nós temos que nos livrar desses rótulos, essas diferentes facções: gay, hétero, rico, pobre, doente mental, não doente mental, portador de armas, não portador de armas. Nada disso pode importar mais. Nós somos unificados em nossa humanidade, e a única coisa que todos sabemos e que apreciamos uns nos outros é a bondade”.

Acho que todos concordam que esse é um discurso lindo, não? Mas, como nada é perfeito, temos que ter muito cuidado com a forma como ele é interpretado e reproduzido – explicarei mais à frente o porquê. Antes de qualquer coisa, bora contextualizar o que estava sendo dito. No tweet abaixo você pode assistir ao trecho do momento exato:

“Por favor, não se esqueçam de que o ódio ou o mal [...] é inteligente, esperto e é invisível. Ele não tem cor, não tem raça, não tem religião, não tem política. É uma cobra invisível que enquanto está planejando seu ataque está pensando consigo mesmo: ‘Eu vou dividir meu inimigo em grupos pequenos e menos fortes e depois vou fazê-los odiarem uns aos outros. Então, será mais fácil derrubá-los’. Enquanto estamos gritando com todo mundo, tentando descobrir qual grupo está causando o problema, o mal está ganhando bem ao nosso redor”.

Durante toda a discussão, que era focada na bondade, ela deu ênfase às divisões sociais e a desconexão entre as pessoas e o governo. No trecho acima, ela falou especificamente sobre jogar a culpa das mazelas da sociedade uns em cima dos outros, como se precisássemos achar um culpado ou algo assim. E até aí eu entendo totalmente o que ela quis dizer. Mas, logo em seguida, ela diz que precisamos nos livrar dos rótulos. E, sinceramente, essa parte me incomodou bastante. Porque, assim, a causa e a culpa desse problema foram transferidas para os rótulos, como se isso bastasse para resolvê-lo.

Geralmente, quando falamos sobre aquilo que nos divide socialmente, é comum julgarmos os rótulos como causadores ou reforçadores dessa divisão. Parece uma resposta óbvia aos problemas de desigualdade: se acabarmos com os rótulos, acabam as diferenças e, consequentemente, acabam as desigualdades e as “divisões” sociais. Se analisarmos bem, esse é um raciocínio um tanto estranho, não acha?

Primeiramente, é importante percebermos que o problema não está – e nunca esteve – nos rótulos e nem nas diferenças, o problema está, na verdade, na forma como lidamos com isso. O problema está no nosso preconceito e está na violência – de onde quer que esteja partindo. É bom ter isso em mente.

Não são os rótulos que nos dividem, são os próprios seres humanos que se dividem por suas diferenças. Isso se chama preconceito, discriminação, ignorância etc. E as diferenças não têm culpa pelas desigualdades ou exclusões, nós temos! As diferenças são naturais e necessárias, elas apenas existem, e não deixarão de existir se forem ignoradas. Tenho certeza que há maneiras mais inteligentes e justas de lidar com as diferenças do que simplesmente ignorar sua existência.

Eu tenho consciência do quão bem-intencionado esse tipo de discurso pode ser – eu mesmo já o reproduzi diversas vezes no passado. Mas não dá pra negar que essa é uma visão um tanto quanto simplista e equivocada. É uma “solução” que, no fim, só irá servir para manter o problema. Então, não é bem uma solução. Sem contar que ela serve muito bem para a manutenção dessas desigualdades. Ignorar os rótulos é praticamente o mesmo que ignorar as diferenças, e lembre-se que ignorar as diferenças não nos tornam iguais, assim como ignorar as desigualdades não faz com que haja mais equidade, pelo contrário.

Se a gente fecha nossos olhos, o que está ao nosso redor não deixa de existir. E isso é óbvio, não é? Então! É a mesma lógica.

Rótulos são políticos! Algumas pessoas não entendem a importância política dos rótulos, e o quanto eles são necessários na nossa sociedade. Porque um rótulo não é só um termo que você pode adotar pra si, ele é uma parte da sua vida e da sua identidade. Isso tem um impacto direto no modo como vivemos e como somos vistos pela sociedade – e por nós mesmos, obviamente. Então, como podemos nos livrar desses rótulos se eles estão tão ligados a quem somos? Não há como abrir mão de nossa identidade e nem de nossa representatividade (se houver alguma, né). Não há como fugir de ser quem você é.

E é assim que nossa sociedade funciona. Inclusive, se uma pessoa se recusa a se rotular, outras irão rotular por ela. E as diferenças dessa pessoa não deixarão de serem percebidas se ela simplesmente decidir não se rotular – principalmente se ela fizer parte de alguma minoria política.

Em outra parte do vídeo, por exemplo, a própria Gaga fala sobre dar voz aos jovens. Mas, então, se esses jovens decidirem se livrar dos rótulos que se identificam, que voz eles terão? E, principalmente, quem eles estarão representando? Porque esses rótulos são, inegavelmente, parte da identidade desses jovens e são importantíssimos por essa questão de representatividade.

Quem se rotula, se representa! E nessa sociedade tão preconceituosa e discriminatória quanto a nossa, a representatividade é mais do que necessária pra se combater às desigualdades e qualquer violência/divisão causada por elas.

Então, temos que ter muito cuidado para não cair nessa armadilha da “falsa igualdade”. Infelizmente, ainda é bastante comum ver pessoas bem-intencionadas – e outras nem tanto – reproduzindo esse discurso. É um conceito que parece óbvio, é fácil, é simples, mas, na verdade, é apenas ignorante.

Confesso que ao ver a Gaga reproduzindo esse tipo de discurso eu fiquei um pouco surpreso, mas, como estou ciente de suas verdadeiras intenções, não fiquei decepcionado. Aliás, eu tenho uma interpretação diferente sobre isso, e, no fundo, acredito que talvez essa também seja a visão dela – apesar do deslize.

Permanecermos unidos como seres humanos, para mim, não significa passar por cima de nossas diferenças e individualidades, mas reconhecer a humanidade uns nos outros, ter respeito e ter empatia. É saber que a mesma dor que você sente, outro também pode sentir. E lembrar que a única coisa que nos une é o fato de sermos todos humanos. Mas nunca se esqueça: somos humanos, mas somos diferentes.

E, se me permitem, arrisco dizer que as nossas diferenças, de certa forma, também nos unem. Porque além de seres humanos, também somos todos diferentes, e esse detalhe acaba se tornando algo em comum entre a gente. Talvez eu esteja viajando? Provavelmente! Mas esse também é um jeito bonito de enxergar as nossas diferenças. Somos todos diferentes entre si! Somos seres únicos. Pode haver algumas similaridades – ou pode haver muitas – entre uns e outros, mas não deixamos de ser diferentes. E essa diversidade é maravilhosa, e precisa ser valorizada ao invés de ser jogada pra debaixo do tapete.

Mas aí você pode estar se perguntando: já que somos todos tão únicos, onde estaria a importância dos rótulos ou de fazer parte de algum grupo? É bom entender que inconscientemente buscamos por iguais, e acabamos nos identificando com pessoas que tenham algumas das mesmas características que a gente. Você mesmo já deve ter percebido isso nas suas próprias relações. Isso é natural. E mesmo que você não se rotule, você certamente faz parte de algum grupo, começando por sua nacionalidade, a região do país, os costumes, a cultura, a sua cor, seu gênero, entre outras características. Também não tem como fugir de nada disso. Mas isso não pode ser usado como justificativa para nenhuma desigualdade social, hein!?

Repito novamente: quem se rotula, se representa. E isso já basta pra justificar a importância dos rótulos. Como a Gaga já disse, não ouça as vozes que te dividem. Mas também não ouça àquelas que querem passar por cima de suas diferenças como se elas não importassem. As diferenças importam! E os rótulos também.

Enfim, a intenção desse texto não é criticar a Gaga e sim tentar trazer essa reflexão sobre algo que considero de extrema importância. Como toda coluna, esse texto está carregado de opiniões pessoais, e o que foi dito aqui não representa necessariamente a opinião de nenhuma outra pessoa da equipe RDT. Lembrando que o que vale é sempre o debate e a conscientização, e é só isso que eu pretendo promover. Não me batam! ;)

Antes de ir, recomendo a leitura do texto “Crianças Más” que digo sobre o quanto a Gaga me ajudou a aceitar as minhas diferenças (e as dos outros), e também recomendo o texto sobre o lado humano da Gaga que, muitas vezes, é esquecido pelos fãs, chamado “Além da Extravagância”. Dá lá uma olhada! Aliás, já falei sobre isso em um dos vídeos do meu canal do YouTube, "SOMOS TUDO O MANO", o link está aí pra quem se interessar (é claro que eu não ia perder a oportunidade de divulgar rs).

Revisão por Pedro Lira